Gravar em Lisboa
Nove álbuns em 11 anos! O número é espantoso mas real. O responsável pela proeza é o cantor Fortinho. «Eu tinha participado num álbum do grupo angolano Yerassa e como os responsáveis da editora Vidisco gostaram da minha voz, deram-me uma oportunidade de gravar e assinamos um contrato de três anos. Acabei por gravar sete discos com a editora», explica o cantor, doravante retirado do mundo da música. Seguiram-se dois trabalhos suplementares lançados sob a chancela de uma outra editora.
O caso de Fortinho é uma excepção em Lisboa. Hoje como ontem, não é fácil editar um trabalho discográfico naquela cidade. Bana recorda-se ainda da conversa com a Valentim de Carvalho quando chegou à capital portuguesa: «Apresentei-me ao responsável e expliquei a razão da minha visita. “Pagamos dois a três contos por EP (quatro temas)”, disse ele. Sorri. Ele acrescentou: “Podemos dar-lhe quatro mil escudos”. Respondi- lhe que os quatro contos nem sequer chegavam para pagar umas cervejas aos músicos com quem ia tocar. Disse-lhe ainda que o meu objectivo não era ver o meu rosto numa capa de disco e que no futuro gravaria com qualquer editora em Portugal mas nunca com a Valentim de Carvalho». Semanas depois, “Bana”, o disco que o cantor tinha gravado em Dakar pela Pathé Marconi, chegava a Portugal. Os dois mil exemplares venderam-se tão depressa que a distribuidora local, por sinal, a Valentim de Carvalho, foi procurar o cantor. Bana rejeitou a contra-proposta. Os Tubarões também conheceram alguns problemas no início da sua carreira. «A editora disse-nos que não éramos conhecidos», segundo Ildo Lobo, vocalista do conjunto cabo-verdiano hoje desaparecido. O episódio ocorreu em 1976.
A maior parte dos músicos responsabilizam as editoras pelas dificuldades encontradas. Ana Firmino: «Em finais dos anos 1990, entrei para uma editora que se comprometeu a editar um álbum. Infelizmente, ela não cumpriu a sua parte». A cantora teve que esperar seis anos entre os álbuns “Amor ê tão sabe” (1998) e “Viva vida” (2004). Lura partilha da mesma opinião: «Tive problemas com algumas editoras, se calhar porque não estava bem informada sobre qual delas podia ajudar-me na minha carreira». Doravante, a cantora integra a Lusafrica, a editora sedeada em Paris e propriedade do cabo-verdiano Djo da Silva.
Sons d’África
Bana encontrou a solução nos anos 70 fundando a Monte Cara, cujo catálogo inclui dezenas de discos, nomeadamente do conjunto Voz de Cabo Verde. Hoje, cabe a Sons d’África, propriedade de Zé Orlando, desempenhar esse papel. Tal como Bana, o produtor foi cantor e passou por algumas dificuldades para gravar. «Nos anos 80, pertenci a um grupo chamado Jovens Africanos. Gostava de cantar mas como já havia um cantor, fiquei pela bateria», conta.
Zé Orlando explica que devido às guerras civis em Angola e Moçambique as editoras tinham deixado de apostar nos artistas africanos em Portugal. Foi nessa altura em que se tornou cantor do Contratempo. O grupo integrou a caravana eleitoral do Partido Socialista (PS) e com o dinheiro ganho, Zé Orlando resolveu custear o seu primeiro trabalho discográfico. Mais tarde, juntou-se a um amigo e dono de um pequeno estúdio e lá foi levando músicos para gravar. Ao mesmo tempo, conheceu José da Silva e algumas pessoas ligadas ao mundo da música cabo-verdiana na Holanda.
«Comecei a fazer a distribuição da música africana gravada noutras paragens. Ia a sítios como a Praça de Espanha e lá colocava os discos. “Rosinha“, dos Livity, e “Bia de Lulutcha“, da Cesária, foram dos primeiros trabalhos que distribui», recorda o produtor. Na altura, trabalhava nas obras mas estava escrito que atingiria o seu objectivo. «Com o dinheiro que ia ganhando, comecei a reeditar alguns discos e assim tornei-me editor», conta o dono de Sons d’África, hoje a primeira editora discográfica africana em Portugal.
O produtor diz gastar entre dez e 30 mil euros por disco, desde a passagem do músico pelo estúdio até à saída do disco da fábrica: «Há alguns artistas ou arranjadores que custam muito dinheiro». Protagonista importante da música cabo-verdiana, Zé Orlando mostra-se bastante crítico em relação a alguns discos. «Podemos dizer que a música africana é descartável porque passados três meses, acaba o tempo de vida de um CD. É esse o problema dos artistas», conta. Para o produtor, a explicação é simples: «Eles trabalham com os mesmos arranjadores e seguem a mesma via ou seja um estilo idêntico e letras pobres (mi ku bo, bo ku mi). Alguns jovens chegam a fazer as letras no estúdio. Nada de comparável com as boas mornas que se faziam outrora», indica o produtor, precisando contudo que os trabalhos mais sérios não têm venda rápida.
Questão de sobrevivência
Alguns músicos justificam a escolha de estilos menos tradicionais como o cabo-zouk por razões comerciais. Fortinho: «É difícil fazer o que realmente gostamos. O zouk não nos pertence mas é aquilo que o povo gosta. Se calhar um disco mais tradicional não terá tanta aceitação. Mas devo dizer que é igualmente bom para um cantor explorar outras fronteiras». A cantora Mizé Badia, que viveu alguns anos na capital portuguesa, tem a mesma opinião: «A chamada música tradicional não atrai muito os portugueses. Eles sentem-se mais atraídos pela música africana moderna».
À esta “onda de aculturação”, segundo a cantora Celina Pereira, junta-se a questão da sobrevivência. Para muitos músicos, trata-se de uma vida difícil. «Vive-se muito mal. Conheço alguns músicos cabo-verdianos, óptimos, nessa situação. Um deles é espantoso mas passa fome», afirma Celina. «Segundo alguns colegas, não é fácil ser músico em Portugal mas acredito que as coisas possam mudar», acrescenta Nancy. Para Boss AC, as dificuldades afectam todos os géneros musicais. «A música está a passar por uma fase muito negativa devido à recessão. Se a recessão lá fora se sente, a situação é bem pior em Portugal», explica o rapper. «No meu caso, tem sido muita ginástica e muito boa vontade para viver exclusivamente da música. Não é nada fácil. As pessoas têm uma ideia muito romântica do que é ser artista, porque vêm as pessoas na televisão e nas revistas e dizem: devem ter uma super vida, um super carro mas as coisas não são bem assim. É preciso ter muito amor pela camisola», acrescenta.
Música de Cabo Verde por temas
É por amor à música da sua terra que Lisboa viu nascer um produtor especial: Rui Machado. Engenheiro de formação e membro fundador de uma associação cabo-verdiana em Portugal, Rui Machado já realizou cinco álbuns – “Música de intervenção“, “Lisboa nos cantares cabo-verdianos“, “Cabo Verde canta a CPLP“, “Evocação de Amilcar Cabral no Folclore Cabo-verdiano” e “Cânticos crioulos ao mar” – onde que juntam temas correntes na música de Cabo Verde.
«A música cabo-verdiana é rica porque abarca todos os aspectos da vida do cabo-verdiano. Por isso lancei-me nesse projecto de recolha para mostrar que as canções não aparecem por acaso. Há uma linha que vai sendo traçada ao longo do tempo e que conta a história do cabo- verdiano», explica Rui Machado. É esta história que o engenheiro decidiu partilhar com os outros. De Lisboa.
Nilton Reis diz
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