Foi em Dakar onde foram lançadas as sementes de Voz de Cabo Verde, nos anos 60, e de Cabo Verde Show, em finais de 70, dois históricos conjuntos que marcaram a música do arquipélago. Quanto à Roterdão, após ter sido terra de acolhimento de toda uma geração de músicos oriundos das ilhas, tornou-se na capital do cabo-love, versão crioula do zouk das Antilhas francesas e um dos principais centros de produção de discos cabo-verdianos. Por sua vez, Paris transformou Cesária Evóra numa estrela mundial, despertando assim o interesse dos promotores da world music para Cabo Verde.
Lisboa no meio dessas cidades? «Câ tem ôte moda Lisboa. Nôs Terra d’adoçon». («Não há outra igual à Lisboa. É nossa terra de adopção»), escreveu Alberto Rui Machado, crioulo radicado na capital portuguesa e autor de cinco discos temáticos sobre a música cabo-verdiana. De facto, a antiga metrópole constitui há muito uma terra de adopção ou de passagem para milhares de cabo-verdianos, entre eles alguns dos principais nomes da música cabo-verdiana.
A ligação é antiga e até anterior às relações com Dakar, Roterdão ou Paris. O primeiro encontro oficial com Lisboa data dos anos 1940, aquando da participação de B.Leza mas também de Edy Moreno, Luís Rendall e Lela de Maninha à Exposição do Mundo Português. Uma actuação marcada por protestos do maior compositor cabo-verdiano que não aceitou ser apresentado em cubatas à semelhança de grupos musicais de outras províncias ultramarinas do continente africano por não corresponder à realidade social cabo-verdiana. Segundo o pintor e músico cabo-verdiano, Kiki Lima, «B.Leza permaneceu em Lisboa até 1945 para tratamento médico e durante esse tempo não deixou de actuar quer em bares e casas de amigos das zonas onde residiam cabo-verdianos, quer em locais públicos como o Teatro da Trindade».
Fernando Quejas também fez parte dos pioneiros e quase imediatamente após a sua chegada, em 1947, iniciou a sua carreira na Emissora Nacional. «Como o Artur Agostinho tinha dinheiro para me pagar, propus-me para actuar no seu programa. Concordou e fui logo arranjar alguns músicos cabo-verdianos para tocarem comigo», recorda o cantor falecido em 2005. Em 1951, Quejas grava um 45 rotações com quatro temas (“Mulher Bonita”, “Recordado”, “Barca Sagres” e “Romance ao luar”): o disco editado pela Columbia Records, então propriedade da editora Valentim de Carvalho, é um dos primeiros trabalhos discográficos gravados por um cabo-verdiano em Portugal.
Graças ao Quejas mas igualmente Marino Silva, Eddy Moreno ou Tututa, as portas de Lisboa se abrem à música cabo-verdiana. Nessa primeira metade dos anos 60, Amilcar Cabral, o pai da independência da Guiné e de Cabo Verde, decide fazer da cultura uma das suas armas nacionalistas. É igualmente o período escolhido pelo ministro do Ultramar de Portugal, professor Adriano Moreira, para lançar uma política de abertura da metrópole à cultura das colónias.
«A política cultural portuguesa no sentido da abertura, reconhecimento ou aceitação de algumas vertentes das culturas dos países africanos de expressão portuguesa é uma tentativa de resposta ou de desvalorização das reivindicações de Amilcar Cabral e de outros líderes africanos», explica Kiki Lima. De acordo com o pintor e músico, a política da cultura oficial portuguesa chamada de “multi-racial” só se fez sentir um pouco mais tarde com a deslocação de artistas dos países africanos lusófonos à Lisboa e a gravação de discos por músicos portugueses e das províncias. Foi na sequência de um convite feito pelo ministro Adriano Moreira após uma visita à Província de Cabo Verde que Titina e o Conjunto Folclórico actuam pela primeira vez em Portugal. Passados alguns anos, a cantora mudava-se definitivamente para Lisboa.
Na opinião de Kiki Lima, houve uma orientação explícita da política oficial que privilegiava a morna, uma vez que esse género musical aproximava-se mais da canção portuguesa, nomeadamente o fado, e, como tal, justificava melhor uma política multi-racial. «Não só não se transmitia géneros musicais mais tipicamente africanos como em Santiago, por exemplo, proibiu-se a prática de batuque e funaná no seu próprio espaço dado que não se identificavam de modo tão claro com a cultura portuguesa», esclarece Kiki Lima.
1970! A emigração cabo-verdiana para Portugal atinge o seu ponto alto. A importante comunidade formada pelos insulares vai favorecer a divulgação da música crioula. De igual modo, as afinidades culturais e sociais entre Cabo Verde e Portugal criam um ambiente receptivo para os intérpretes da música cabo-verdiana apesar do dirigente associativo João Miranda notar alguma retracção dos portugueses até finais dos anos 1980. No entanto, a mesma fonte reconhece alguns factores positivos como o interesse manifestado por algumas figuras lusas e ainda o espaço criado pela música cabo-verdiana na capital portuguesa. «No Hotel Punta, houve música cabo-verdiana durante um ano graças a Teco Duarte», recorda este membro da Associação Cabo-verdiana de Lisboa.
De Cabo Verde chegam alguns jovens músicos como Paulino Vieira, Tito Paris, Kabanga, John, Armando Tito e Leonel Almeida. Por sua vez, Vasco Martins frequenta o compositor português Fernando Lopes Graça entre 1979 a 1981, no quadro da sua formação musical. Também Cesaria Évora desloca-se à Lisboa. Graças à Organização das Mulheres de Cabo Verde (OMCV), a cantora grava um disco na capital portuguesa juntamente com Celina Pereira, Marta, Zenaida Chantre e Maria Emília mas o sonho de uma verdadeira carreira na antiga metrópole não se concretiza. Cize regressa ao seu Mindelo natal bastante decepcionada.
No entanto, o reconhecimento português chegaria a 15 de Julho de 1999 com a sua condecoração pelas autoridades de Portugal com o Grau de Grande Oficial de Mérito, uma honra a que também tiveram direito Bana e Titina. A Lusafrica, propriedade de José da Silva, o produtor de Cesária Évora, “retribuiu” o gesto em 2001 ao escolher o Pavilhão do Atlântico para o lançamento mundial de “São Vicente di longe”. Pela primeira vez após oito anos de uma carreira excepcional e quatro milhões de álbuns vendidos, Cesária Évora optava por Lisboa antes de Paris para apresentar um novo trabalho discográfico.
Entre as estadias de B.Leza e Cize, muitas coisas aconteceram. Algumas menos boas como as dificuldades que enfrentaram Bana ou o conjunto Os Tubarões para convencer as editoras portuguesas e gravar um primeiro disco. Hoje existem editoras discográficas especializadas na música africana e propriedades de cabo-verdianos como Zé Orlando mas para muitos intérpretes, os problemas mantêm-se. «É muito mais fácil gravar em Cabo Verde. As coisas são piores para aqueles que querem gravar pela primeira vez», diz quem sabe.
Mas de Lisboa, a memória prefere sobretudo guardar boas recordações como o facto da música cabo-verdiana ter passado do seu meio natural, designadamente festas familiares, bares e bairros crioulos para salas de espectáculo frequentadas pelo público luso, como o Coliseu ou a Festa do Avante. É disso exemplo a actuação de Ildo Lobo, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém em 2002, por ocasião do lançamento do seu álbum “Intelectual”. Ao mesmo tempo, alguns artistas portugueses passaram a frequentar o meio musical crioulo e a gravar temas das ilhas enquanto que os cantores cabo-verdianos participam em discos de artistas lusos e dos outros países de língua portuguesa. Ao mesmo tempo, procuram aproveitar os géneros musicais de outras regiões para enriquecer a sua música.
Foi nesse contexto que Tito Paris deu um novo fôlego à coladera, na primeira metade dos anos 1990. «Aqui um músico interpreta um funaná mas com uma influência latina. Esta influência dá-te prazer de criar algo», diz, destacando a facilidade de criação em Lisboa. Opinião partilhada pelo guitarrista Zé António, antigo membro do Africa Star: «Não há melhor sítio do que Lisboa para actuar. Aqui é como Cabo Verde. Além disso, é difícil encontrar um B.Leza ou um En’Clave noutros países da diáspora cabo-verdiana». Não é por acaso que Lisboa está referenciada em cerca de 50 canções, algumas das quais escritas por compositores como B.Leza, Manuel d’Novas e Renato Cardoso.
Francis Monteiro diz
Gostaria mais informações sobre o grupo original “Cabo Verde Show” criado nos finais dos anos 60 em Lisboa.
O grupo era composto por Armando Tito, Jovino dos Santos ainda vivos e também os legendários Cabanga, Norberto Tavares e Catchas que atuavam na Bia dos Anjos