Entre 1934 e 2004, dezenas de músicos cabo-verdianos passaram por Lisboa. Uns apenas conseguiram gravar um disco antes de desaparecerem da cena musical enquanto que outros afirmaram-se definitivamente no meio artístico pela obra realizada. São eles B.Leza, Fernando Quejas, Bana, Paulino Vieira, Dany Silva, Tito Paris, Titina e Celina Pereira, entre outros. O maior compositor de Cabo Verde, Francisco Xavier da Cruz, deu o mote em 1940. B.Leza, como é conhecido, foi convidado a actuar na Exposição Colonial que se realizara em Lisboa. Passado o evento, o compositor e intérprete permaneceu na capital portuguesa para tratamento médico, o que não o impediu de ter uma vida artística rica. Veladimir Romano conta em “Cadernos de um trovador” que a permanência de B.Leza em Lisboa resultou em trocas de «conhecimentos e participações de vária ordem em espectáculos e movimentadas serenatas na zona de São Bento, onde viveu».
O autor destaca ainda as composições feitas durante este período, nomeadamente “Nôte de Mindelo”, apresentada num espectáculo-concurso. Interpretada pela jovem cabo-verdiana Rosinha Figueira, “Nôte de Mindelo” seria a «primeira canção cabo-verdiana vencedora de um concurso musical em Portugal». Foi também em Lisboa onde B. Leza compôs “Mica”, em homenagem à Maria Luiza, sua futura esposa. Depois de B.Leza, foi a vez de Fernando Quejas chegar à Lisboa, procedente da Praia. Tinha 25 anos e um objectivo bem claro: «Sempre quis cantar». O seu sonho concretiza-se na Emissora Nacional onde estreia-se como cançonetista num programa matinal e, mais tarde, em 1952, quando lança o seu primeiro disco pela Columbia Records. Ao longo da sua carreira, Quejas gravou 22 EP’s e um CD aos 76 anos de idade (“Corredor de fundo – Câ no dêxá nôs morna morrê”) além de inúmeros programas radiofónicos e acontecimentos culturais de divulgação da cultura cabo-verdiana em Portugal e no estrangeiro, apesar das vozes que no arquipélago criticavam a influência “portuguesa que deixava transparecer nas suas mornas”.
Além de ter sido um dos primeiros cabo-verdianos a gravar em Portugal, Quejas marcou a música cabo-verdiano como sendo dos primeiros a introduzir os instrumentos de sopro, o reco-reco e os chocalhos nas suas mornas. Para Mesquitela Lima, o artista falecido em 2005 é o pioneiro da divulgação da música de Cabo Verde em Portugal e quiçá no mundo: «Fernando Quejas, ao sair da sua terra para se fixar em Portugal, já trazia na sua bagagem o pensamento de divulgar a música cabo- verdiana que, seria, ao tempo, desconhecida ou quase desconhecida». Uma preocupação também manifestada por Marino Silva e Edy Moreno, outros pioneiros da música cabo-verdiana em Portugal.
Também Titina beneficiou da abertura portuguesa à música cabo- verdiana antes do 25 de Abril de 1974. A futura grande senhora da música cabo-verdiana sempre viveu num ambiente musical, em São Vicente: um número razoável de discos e um gramofone em casa e dois vizinhos chamados B.Leza e Frank Cavaquim. Estava escrito que o seu destino teria que passar pela música. E assim aconteceu ainda era moça. Depois das primeiras actuações na sede do clube Castilho e noutros espaços no Mindelo, surgiu o primeiro convite para Lisboa onde Titina acabou por radicar-se anos mais tarde e levar em frente a sua carreira artística. «Fora de Cabo Verde, a nossa música tem um sabor especial», diz aquela que decidiu homenagear B.Leza interpretando as obras do compositor num dos poucos álbuns por ela gravados. Nada mais natural da parte daquela que é chamada Titina de B.Leza.
Após ter passado por algumas comunidades cabo-verdianas, Bana decidiu assentar arraiais em Lisboa. «Os portugueses gostam de mim e respeitam-me bastante. Noto isso quando subo ao palco. Faz-se logo silêncio e chovem os aplausos», diz aquele que para muitos é o rei da música cabo-verdiana.
Como Titina, a sua relação com a música começou bem cedo e passou pela casa de B. Leza. «Era um homem excepcional. Costumava dizer-lhe: Xavier, tu és excepcional. Vives para as pessoas», recorda o cantor. Do compositor cabo-verdiano, Bana herdou a paixão pela morna: «Gosto de cantar mornas, principalmente as mornas do B. Leza cujos versos e melodias são bastante inspiradoras. Disse-me ele um dia: Bana, os versos foram feitos para serem ditos de forma clara. Os músicos é que devem acompanhar-te».
O desejo de ser cantor levou Bana a emigrar para Dakar aos 29 anos. «Como não tinha meios, procurei o Herculano Vieira e perguntei-lhe se me deixava fugir a bordo do Neptuno. Em seguida, fui bater à porta do Guy para ver se me podia ajudar na compra de um par de sapatos. Além dos sapatos, fabricados por Raul e que custaram 300 escudos, Guy pediu ao Benvindo Fortunato que me enchesse uma mala com roupas», recorda. Acolhido por Becona, Bana começou a dar os primeiros passos em Dakar, nomeadamente no Thêatre Palais, antes de encontrar o compatriota Nuna que lhe propõe a gerência de uma discoteca na capital senegalesa. «Montei um conjunto com o Luís Morais, o Morgadinho, que mandei buscar em Bissau, e Toy d’Bibia».
Em 1961/62, Bana grava o seu primeiro disco e muda-se para a Holanda. Seguiram-se Paris, América e finalmente Lisboa, onde chegou em 1969: «Procurei viver em Cabo Verde depois do 25 de Abril mas não foi possível. Decidi então fixar-me definitivamente em Portugal». Em Lisboa, Bana inaugura uma editora discográfica e um restaurante/dancing a que chama Monte Cara, e abre as portas da capital portuguesa a um grupo de jovens músicos residentes em Cabo Verde, nomeadamente Leonel, Kabanga, John, Armando Tito, Tito Paris e Paulino Vieira.
Apesar da sua juventude, Paulino, futuro pianista do conjunto Voz de Cabo Verde, não deixava indiferente o meio musical. Como muitos, começou pelo violão que aprendeu com o pai, em São Nicolau, a sua ilha natal. Passada a fase de iniciação, o jovem ruma para São Vicente onde prossegue a sua formação musical na escola Salesiana.
Paulino Vieira chega a Lisboa no início dos anos 70 e transforma-se rapidamente no líder de Voz de Cabo Verde, do qual é pianista e vocalista. Exceptuando Luís Morais, um dos membros fundadores do conjunto, este Voz de Cabo Verde é essencialmente integrado por novas figuras como o cantor Leonel ou o baterista Cabanga.
O pianista multiplica as iniciativas inéditas como a realização do álbum “Peace and Love” que junta várias figuras musicais do arquipélago num projecto humanitário, compõe a emblemática morna “M’cria ser poeta” e abre-se a músicos de horizontes diferentes como o moçambicano Watis, num dueto memorável no primeiro aniversário do Baile, a discoteca que anos depois foi baptizado de B.Leza.
Após ter dirigido o grupo de músicos da Cesária Évora no início dos anos 1990, Paulino Vieira retirou-se do meio musical. «Tinha cumprido a minha tarefa que tinha a ver com o lançamento de certos artistas. Tratou- se de uma aposta total nas potencialidades africanas desde a música até aos seus tocadores», recorda. Na verdade, o afastamento voluntário do músico deveu-se sobretudo à posição das editoras que, na sua opinião, estavam a escravizar os músicos africanos. «Um fulano passa a vida inteira trabalhando e idealizando um disco quando aparece uma editora que dá uma percentagem mínima. Isso é injusto», denuncia.
Em 2003, o músico regressa à cena musical cabo-verdiana com o disco “Paulino Vieira – Na sua aprendizagem Vol. 1 Guitarra Clássica”, totalmente custeado pelo artista, doravante preocupado com o seu trabalho pessoal: «Depois de utilizar a minha carreira para divulgar os nossos artistas e dar a conhecer ao mundo a riqueza da nossa cultura, quero, agora, divulgar a paz, a confraternização e a justiça através da minha música».
Até 1982, Tito Paris vivia no Mindelo onde actuara em grupos como Seis Jovens Unidos e Gaiatos, ao lado de outros futuros grandes músicos como Voginha, Bau, Bius e Dudu Araújo. Apesar de ter chegado à capital portuguesa pelas mãos de Bana no início dos anos 80, Tito acabaria por trilhar o seu próprio caminho. «Estou contente», diz. Não há razão para menos pois ouvir um disco ou presenciar um espectáculo do artista é sinónimo de festa e sabura.
Em 1994, o guitarrista e cantor grava “Dança ma mi criola”, um álbum que marca uma nova etapa na evolução da coladera, com um ritmo mais lento que o da coladera do Voz de Cabo Verde ou da coladance de Cabo Verde Show. A coladera de Tito situa-se entre a morna e a coladera tradicional em que a voz particular do músico faz a diferença. «Sente-se o meu estilo mas vê-se que se trata da coladera. Era importante fazer algo porque a música de Cabo Verde estava a ficar muito fechada», justifica, precisando que Lisboa e o encontro com outras músicas e músicos não estão alheios a esta nova coladera.
Tito Paris diz-se feliz e não se importa de ter apenas gravado meia dúzia de álbuns em pouco mais de vinte anos de carreira. «Não é preciso mostrar a qualidade do teu trabalho em 100 álbuns diferentes. Gosto de gravar de quatro em quatro anos porque dá ao disco o tempo de viver, de ser descoberto pelo público e pela crítica», remata o artista que por razões de saúde se retirou momentaneamente da cena musical em 2004. Quando Tito chegou a Portugal, Dany Silva já lá estava. Apesar de ter começado a tocar violão ao lado do pai, na Boavista, foi na Escola de Regentes Agrícolas de Santarém que se deu a sua primeira grande experiência musical. «Era um dos cantores do grupo Charruas. Enquanto um colega interpretava canções rock, eu dava voz a sucessos de blues e soul de Ray Charles ou Otis Redding», recorda. Volvidos sete anos, mudou-se para a capital portuguesa e integrou o Quinteto Académico Mais Dois. Foi nessa altura que o nome do baixista começa a circular no meio artístico local.
Em finais dos anos 1980, o músico inaugura um espaço chamado Clave de To, frequentado por vários artistas como o músico português Rui Veloso. A amizade entre os dois seria importante para o cabo-verdiano cujos temas cantados em crioulo chamam a atenção do artista luso. «Até então, tinha gravado apenas em português pela Valentim de Carvalho. Como fazíamos parte da mesma editora, ele foi falar com os responsáveis no sentido de eu gravar em crioulo», recorda. Assim aconteceu. Desde então, o músico gravou cerca de seis álbuns em crioulo mas abertos a músicos portugueses com duetos com Sérgio Godinho e Carlos do Carmo. A maior parte dos músicos cabo-verdianos têm nos jovens e adultos, o seu principal público.
No caso de Celina Pereira, o grupo de admiradores inclui também várias crianças graças a um programa multicultural concebido pelo violinista Yehudit Menuhin. «Sou contadora de estórias numa escola em Algés desde 1996. O programa concebido por Menuhin nos leva a reflectir sobre o efeito da música nas crianças, sobretudo aquelas que têm problemas em casa», indica. As estórias de Celina são contadas ao som da música e enquadram-se igualmente no seu projecto de recolha e salvaguarda do património crioulo.
Já lá vão uns 20 anos que Celina Pereira escolheu essa via. «O que está em jogo é a nossa identidade», diz, justificando o seu interesse pela preservação da memória cabo-verdiana. O seu primeiro álbum, “Força d’cretcheu”, traz os resultados dessa pesquisa feita na sua ilha de Boavista, noutras localidades de Cabo Verde, em Portugal e junto das outras comunidades cabo-verdianas no estrangeiro. «Tenho sempre o meu gravador comigo», lança.
As pesquisas assumem a forma de cantigas de roda que povoaram a sua infância e que hoje conta às crianças, mazurcas, cantigas de casamento, lunduns e choros. Uma salvaguarda da memória do arquipélago natal que não significa isolamento: o álbum “Harpejos e gorjeios”, considerado pela crítica portuguesa um elogio à lusofonia, é sinal dessa abertura ao mundo.
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