Vozes de jovens
«Onde situar o rap em crioulo, língua-de-calão produzido e consumido pelos jovens negros portugueses? No espectro da ‘nova’ música africana ou na categoria de rap negro português?», interroga António Concorda Contador em “Cultura juvenil negra em Portugal”, sua dissertação de mestrado. Para Boss AC, a pergunta não faz sentido: «Evito rótulos e catálogos. Quero é ser visto como músico, as pessoas gostam ou não gostam. Não quero que se dê tanta importância ao facto de ser negro, branco, cabo-verdiano ou moçambicano. Tive a sorte porque onde me mexo tanto apanho o público africano como o público europeu», lança.
Como muitos jovens cabo-verdianos de Lisboa, Boss AC, filho do pintor António Firmino e da cantora Ana Firmino, escolheu o rap para desenvolver o seu projecto musical e os resultados estão à vista. «Já tenho alguns álbuns e várias compilações. Sou igualmente compositor e produtor», precisa. O rap de Boss AC é o resultado do seu quotidiano: «Canto a minha vivência, o que vejo, o que está à minha volta, o meio onde me insiro, as pessoas que vejo. Cabo Verde vem naturalmente na minha música pelo meu back-ground e da minha família».
A viagem a Cabo Verde faz-se através do crioulo, utilizado nalgumas das suas canções como “Dam corda”, para contar o arquipélago. «”Dam corda” é uma música muito específica porque sintetiza um bocado aquela onda do Mindelo, com o ambiente da Praça Nova. É um bocado o lado humorístico e tem muito de São Vicente. Tinha Cabo Verde na mente quando fazia aquela música», recorda. Noutros casos, a ligação do rapper ao arquipélago faz-se através de excertos e samples de temas cabo- verdianos. «Uma das minhas canções partiu duma morna. Deu-se uma volta daí ter muito pouco em relação à morna mas a base é a canção “Carinha di bo pai”». Apesar de reconhecer o poder de tocar muitas pessoas graças à sua música, Boss AC recusa ser visto como o porta-voz de uma geração de jovens.
O “rap negro português” de que fala António Concorda Contador inclui alguns jovens cabo-verdianos nas suas fileiras como Strike MC, Thugs, Jay, Nevallos, Dinga, Vatta, Jungle e Blayzze, do grupo Da Blazz, Catchores da Pinga e o seu campeão de kick-boxing, José. As canções são em crioulo e português e denunciam comportamentos de polícias mas também dos seus conterrâneos, as dificuldades de alguns pais em educar os filhos, etc. Todos são amadores porque, como diz Boss AC, o “rap negro português” continua a viver num certo gueto apesar das coisas começarem a mudar no chamado underground.
Sara Tavares
Sara Tavares, compositora e guitarista, bem podia ter enveredado para o rap. Quando começou a dar nas vistas em 1994 (ganhou os concursos televisivos “Chuva de estrelas”, na SIC, e “Festival RTP da canção”), o hip-hop estava na mó de cima. «Lembro-me que na altura apareceu toda a malta do rap. Eu não cantava rap. Nunca foi um impulso meu. Eu gostava de cantar melodias e de usar a voz como instrumento e ali tinha mais a ver com a intervenção e o ritmo das palavras», conta.
Um ano depois dos dois triunfos televisivos, a jovem cantora lança o projecto “Sara Tavares e Shout”, baseado no gospel, e decide definir a sua carreira. «A música estava sempre na cabeça e decidi tornar-me profissional. Queria ter uma maior disponibilidade para fazer espectáculos, ensaiar, conhecer músicos e compor. Como já havia muita solicitação devido à mediatização da minha pessoa, já não havia espaço para a escola», explica.
Para completar a sua aprendizagem, Sara procura os colegas músicos, desenvolvendo a composição, a consciência musical, os arranjos, a construção musical e a produção. No início, o gospel assumiu um papel bastante forte na música da cantora. «Ainda não tinha desenvolvido uma personalidade musical própria. Ouvia muito gospel, professava e professo aquela fé e achava adequado e cantar gospel», explica Sara Tavares. Foi então que ocorreu o encontro com o arquipélago, primeiro, actuando no I Congresso de Quadros Cabo-verdianos em Lisboa, em 1994, e, depois, integrando a comitiva do então Primeiro-ministro português Cavaco Silva, durante uma visita a Cabo Verde. «Conhecia alguns nomes como Cesária Évora, Tito Paris, Os Tubarões, Finaçon, Gil and Perfect e o Splash mas nem sequer consumia a sua música. Com as minhas idas a Cabo Verde, comecei a interessar-me, procurando materiais, frequentando o B. Leza e o Enclave, convivendo com os músicos, interiorizando a cultura», precisa.
A jovem cantora recorda esta época com alegria: «Conheci a minha família e comecei a falar crioulo. Com as minhas viagens a Cabo Verde, comecei a perguntar, a procurar saber mais sobre mim. Na altura só estava a apreender e a procurar entender. Estava muito feliz. As minhas idas serviram muito para me fortalecer como pessoa. Sentia que pertencia a uma nação».
“Mi ma bo”, lançado em 2002, mostra claramente que Cabo Verde e o crioulo fazem definitivamente parte da sua vida. «Sinto orgulho da minha raiz cabo-verdiana. O que eu digo em “Mi ma bo” é a minha alegria de me sentir cabo-verdiana», diz. O álbum traz sonoridades cabo-verdianas e de outras paragens, num processo considerado normal pela cantora. «Somos uma nação contemporânea que não se baseia só na tradição. “O cabo-verdiano viaja”, o cabo-verdiano ouve outras músicas. Quem vai ouvir um disco de um artista cabo-verdiano não deve esperar ouvir apenas a morna porque este artista tem uma vivência no mundo contemporâneo. Aliás, quando apareceu, a morna era uma forma contemporânea de estar no mundo passado. Vão surgir novas tendências por causa dessa realidade», lança Sara Tavares, cuja discografia enriqueceu-se em 2005 com “Balancé”.
Lura
O segundo álbum da também cantora Lura “In love” é o exemplo acabado dessa nova tendência entre os jovens artistas cabo-verdianos da diaspora. Batuque, música moderna portuguesa, soul cantado em crioulo misturam-se nesse trabalho lançado em 2002. Até então, esta cabo-verdiana nascida em Lisboa tinha apenas um trabalho a solo, lançado em 1996. Um álbum que marcou a sua verdadeira entrada no mundo da música pois até então Lura limitava-se aos estúdios, fazendo coro para outros músicos. «Comecei a participar em discos de outros cantores e as pessoas passaram a ouvir-me cada vez mais», recorda. O primeiro convite foi feito pelo santomense Juca para a gravação de “Sabina”. «O que eu queria era ser bailarina mas acabei por gostar da minha participação no disco. O tema foi um sucesso no espaço lusófono», lembra Lura, para quem os coros constituíram uma boa escola.
Logicamente, o convite para gravar um álbum acabou por chegar. «Estava numa discoteca a fazer coros para o Don Kikas quando um produtor se aproximou e perguntou-me se queria gravar um disco. Já tinha algumas coisas escritas e como surgiu a oportunidade, fui à minha gaveta buscar as composições que lá tinha», recorda. Excepto “Prece dum fidje”, de Paulino Vieira, todos os temas deste primeiro disco são da autoria da cantora.
Após um segundo álbum menos conseguido, Lura marcaria definitivamente os espíritos em 2005 com “Di korpu ku alma”. Editado pela Lusafrica, o álbum traz uma lufada de ar fresco ao batuque e classifica-se entre os melhores da discografia cabo-verdiana. Fora do arquipélago, a cantora é logo vista como uma das futuras estrelas da música africana. Ainda bem pois há muito que a cantora escolheu essa via: «Sou uma rapariga que decidiu ser cantora porque é esse o seu destino e que está a trabalhar para isso».
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